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A Rocco lança um blog especial sobre QUE PAIS É ESTE? , de Affonso Romano de Sant`anna: http://quepaiseesteolivro.wordpress.com/

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Affonso Romano de Sant`anna

Deu-se conta de que não estava entendendo nada dos seus sentimentos em relação à pessoa que desejava & detestava. Desejava& destestava, exatamente com esse “&” de Cia. Ltda. , porque se sentia enlaçado, laçado e cansado dessa ligação como se houvesse entre ambos um pacto de feliz infelicidade.
O fato é que sofria. Sofria e amava. Amava e detestava o objeto que amava. Mais complexo ainda: estava apaixonado pelo objeto de seu sofrimento. Já nem sabia se amava mais do que sofria, como o viciado o vício. Mas que diabo de amor é esse? (se cobrava), por que tem que ser essa coisa tão desagradável? (se punia), enquanto ia anotando umas palavras no primeiro pedaço de papel à sua frente. E foi se dando conta que isto já era uma rotina, uma mania. Volta e meia pegava um pedaço de folha qualquer e ia anotando as características positivas e negativas do seu amor. Era como se anotasse para se liberar. Se escrevesse aquilo e deixasse ao leu, aquilo eram despetalados espinhos que iriam ficando fora da ferida. Ou, talvez, fosse um modo de elaborar os confusos sentimentos. Havia lido num manual americano, desses que mandam anotar e listar o que a pessoa pensa ou aquilo que deve se esforçar por obter, para assim visualisar e clarear seus contraditórios sentimentos e vontades, e então ia anotando.
Mas quanto mais anotava (aqui e ali os fragmentados sentimentos e papéis iam se disseminando dentro de livros, agenda, entre recibos dívidas e dúvidas), quanto mais anotava o que achava positivo e negativo, mais se desesperava porque a coluna do negativo só crescia. Mas quanto mais cresciam os atributos negativos da pessoa amada que racionalmente dissecava, mais preso a ela se sentia. Então olhava a lista, como quem faz um rol de compras e se indagava. –Diacho, porque não acabo logo com essa relação?
Topou com uma dessas listas, que havia escrito há meses. Os dados negativos estavam lá:
Me provoca insônia
Me deixa em ansiedade diante do telefone
Me transformou numa pessoa insegura
Tem uma estranha oscilação de humor
Me faz sentir ridículo
É muito imprevisível
Inibe meus afetos e palavras
Me faz sentir rejeitado
Tem umas coisas tão infantis
Não se interessa por minhas coisas
É auto-centrada
Na verdade, é imatura
Só quer receber
Mas aí,contraditoriamente, começava a se lembrar de certos momentos, de detalhes do corpo, ou de alguns instantes de prometida paz e felicidade. Quem sabe se …
Vou pegar o telefone, não, telefone não é o instrumento certo para isto, tem que ser pessoalmente essa conversa, aliás, vou pegar o telefone, mas é para marcar logo um encontro, dizer que precisamos ter uma conversa pessoal e depois, cara a cara, dizer, enfim, que pensei muito que é melhor a gente parar por aqui, etc.
Telefonou. Marcou. Foi, viu e não venceu nem convenceu.
Mas é a última vez, foi se dizendo na volta para casa, como se quisesse se convencer que a derrota não havia sido em vão.
Não foi a última vez. Outras últimas vezes se sucederiam. Precisava ser vitoriosamente derrotado várias outras vezes, como se quisesse gastar o corpo alheio no desencontro dos encontros.
E a lista de defeitos e qualidades do objeto desejado & destestado ia refazendo e reescrevendo, c omo se, pela reinscrição, a tinta fosse se gastando, como se assim os sentimentos fossem se exaurindo, se apagando, se repetindo, se anulando, com se a melhor forma de se libertar do infeliz amor fosse sofrê-lo até o fim, ou, então, até o momento em que seu instinto de sobrevivência o fizesse, subitamente, romper com tudo e, finalmente, libertar-se.

Autor: Affonso Romano de Sant`anna

Gabriel Perissé


[Imagem- Autoria Desconhecida]

- Livraria como lugar de terapia -

Entrar numa livraria é, em si mesmo, um ato terapêutico. Tudo ali converge para a cura do tédio e outras doenças: livros que querem gente e gente que gosta de livros, gente que trabalha com livros e gente buscando livros, cheiro de livro, livros em exposição, suas capas, a sensação incontestável de que o mundo é feito de papel e palavras.

Pelo menos uma vez por semana, saia da cama com a idéia fixa: entrar numa livraria. Fique ali durante meia hora, ou mais. Toque os livros e se deixe observar por eles.

Escolha um, leia algumas páginas ao acaso. Visite autores conhecidos. Conheça novos autores. Não pisque, não hesite, arrisque, molhe os pés nas águas frias de algum livro.

Não é preciso comprar nenhum livro no dia em que estiver na livraria. Basta ficar ali dentro, experimentando o clima livral, como se o mundo fosse aquilo só, aquela fosse a paisagem em que nos coube viver.

Escolha um dia qualquer, entre na livraria, para ouvir a respiração dos livros, seus sussurros, seus chamados silenciosos, sentir no ar a aflição dos livros — porque eles querem sair dali para conhecer a realidade aqui fora.

Se algum livro conquistar você, compre-o então, tire-o dali, daquela prisão, daquela redoma, daquele orfanato, daquele abismo. Leve-o para fora, prometa-lhe a leitura mais intensa, as descobertas mais empolgantes, os delírios de quem lê. Leve-o para fora dali. Para dentro da sua vida.

O livro comprado e levado é mais do que uma nova companhia. É compromisso para sempre, na euforia e na depressão, na miséria e na abundância, sem possibilidade de empréstimos, pois bem sabemos que livro não se empresta... Nem se devolve.

Ao chegar em casa, deixe o livro descansar um pouco, não tenha pressa. Deixe que ele se sinta à vontade. Mais tarde,quando enfim vocês dois estiverem juntos e puderem conversar em paz, esqueça-se de tudo, para lembrar o essencial.

Contudo, muitos outros livros estão ainda na livraria, sem destino, correndo o risco do encalhe, abandonados à própria sorte, ameaçados pelo esquecimento, pela morte. É preciso, portanto, voltar até lá, mergulhar outra vez na livraria.

Entre na livraria qualquer dia desses. Lá estão eles, os livros. Não queira saber se são caros ou baratos, famosos ou modestos, compreensíveis ou obscuros. Entre lá. Eles estão esperando por você, ansiosamente.

Autor: Gabriel Perissé

[Gabriel Perissé é doutor em Educação pela USP e escritor. ]

Amina Ruthar


( Para os governantes do Brasil)

conheces a trilha do inferno,onde o poema desliza morto e
a palavra desfalece nos ventos avessos do medo?

conheces a morbidez das águas que leva o menino anônimo
filho da saga (praga?) dos alagados, velado no barro?

conheces os escarlates da febre nascida da lama, que arde
e sangra no corpo frio : - desesperada chama?

eles sim:- conhecem dos ácidos frutos
eles sim:- tomam no cálice do engano

conheces este soco no estômago?

Autora: Amina Ruthar

José Félix







1


Nos dedos há a combustão possível.
Na carta velha as palavras doem
no esquecimento da emoção da frase
e no relâmpago do tempo soa
o trovão de uma tempestade fria.
Há milhares de brincadeiras femininas
que se colam ao filme, e de tão cegas
na luminosidade dos holofotes
as personagens constroem figuras
que são as simples sombras irrequietas.
Há, claro, a possibilidade lúdica
da intervenção da escrita literária
que persegue o desejo do pão claro
na seara semeada no próprio tempo.


2


Na subversão da escrita
o desejo não é uma falácia.
Se escolho o texto, escolho a emoção
que persegue a frase transfigurada.

a mulher é sintagma, flor-palavra
poema-árvore, erotismo, ruga-de-tronco
floração para todas as estações.

Toco no texto, acaricio o corpo;
na escrita leio a forma
da escultura das letras, o desenho
com a voz que permanece no rosto.

Na leitura das mãos, o nome é a substância
que lavra o texto.


3


A lua tem a forma, e tem a cor
de um poeta romântico com sífilis.
A doença pornográfica que veio
da leitura de um poema de Baudelaire
acentua-lhe a tristeza campesina
quando, para lá dos olhos, o mundo
é um simples ponto sem admiração.
O chão é a fronteira dos sentidos
porque o desejo não ultrapassa o texto
que, displicente, cai na flor do rio.
A frase, inteira, é um acessório
que enfeita a margem do tecido puro.


4

na parede há um texto
de emoções.
não encontro nela
as palavras do desejo.

a árvore, lá fora
dá-me o fruto
numa carícia perdida na folhagem.


5

no espelho do teu rosto
o meu desejo.
a frase, imperceptível
voa dos lábios
para os dedos.

joaninha a perceber a emoção
do silêncio da palavra.

6


a claridade luz
sublinha a sombra

a réstia de alegria que anuncia
o início do sorriso


Autor :José Félix in "Lector", excerto do livro em preparação de publicação, no total de 20 poemas

domingo, 11 de abril de 2010

Cláudia Helena Villela de Andrade


Se eu não dormir?

Ultrapassar sem falha

A impaciência da insônia,

Das horas no vácuo,

Ouvindo o pêndulo do relógio da sala

E a luz da lua que não se mexe

No silêncio de Orion sem cauda,

Fixa, permanente.

Vou plantar sonhos na minha seara.

Ceifar a noite decantada de madrugada,

Sem descanso, feito um rio de inverno que não seca,

Filete sem vida.

Insistente.

Se eu não dormir?

O sabiá não cisca o grão na minha mão

Porque a trava do viveiro quebrou

E os pássaros migraram de mim...

Estão aqui e deixaram-me.

Voam sobre pastagens e

Perseguem os cantos de quem nunca morre.

Não adianta ter pássaros em gaiola.

Se eu não acordar?

Meus olhos vão sangrar

De peso e de pedra.

Minhas mãos, em cruz,

Sem o próprio abraço.

Nem a terra há de querer

O resto sólido da minha alma.

Para sempre insepulta.

Autora: Cláudia Helena Villela de Andrade

sonia regina


desapareceram as estrelas e pouco te faz crer que existiram.
ver já não te basta, a contemplação ruiu.
temperaturas amenas desistiriam deste tempo, se pudessem
desvincular-se do sol

a umidade atingiu a ficção, tudo ficou velho e bolorento

tens escárias, tua dor tem cheiro ruim
e ocultá-la não impede o odor que se alastra

eventos fatais são imprevisíveis e o poético não é sinal de profecia.
portanto, desiste das palavras que têm função:
estão contaminadas por uma destinação secreta que fracassou

exuma esse peso biográfico que te acompanha e transforma,
deixa para trás a publicidade fúnebre da criança que ainda te ronda:
há mais que simulações de felicidade, a maldade é coisa da mente
e a mitificação da dor do artista é estratégia do poeta.

Autora: sonia regina

Maria João Oliveira




Foi para a banda de música da vila como quem agarra a partitura de um sonho e constrói outro hino da alegria. Naquele adolescente, as notas da pauta corriam dentro das veias como um rio. Voava nas asas do seu canto e a esperança dançava nos seus olhos azuis.
Um dia, na cidade grande, um maestro conhecido parou, fascinado, junto do coreto. E quis saciar a sede daquele músico. E quis levantar, bem alto, aquele facho a arder junto à terra.
Porém, à mesma hora, no latifúndio, o pai do jovem músico morria sob as patas de um cavalo negro. Na mesa do seu lar, o pão endureceu e nos olhos da mãe era noite cerrada. Expulso da Terra Prometida, ele era, agora, o homem do leme. O dever ditava, assim, as suas leis, mas o sonho não se rendia e cavalgava a corta-mato, no seu sangue. Tinha fome do pomar todo, mas nem um fruto podia colher.
Na oficina, João, o jovem músico, obedecia ao mestre, sem correntes nem ventos favoráveis ao sonho. E entregou-se à arte milenar de trabalhar a madeira, enquanto trauteava Mozart, Chopin, Wagner, Verdi.
Aquela oficina não tinha telefone, fax, computador, nem serra fixa de mesa, lixadeira, nem serra portátil, desempenadeira… Tinha mãos de calos, mãos suadas, mãos de sangue que esculpiam a madeira, com a paciência e a habilidade do ourives.
E o belo sabor das coisas simples começou a fazer parte do seu ofício, num espaço já seu, com a imagem de S. José carpinteiro, num calendário. E na madeira, o formão gravava flores, espigas, presépios, anjos, dragões, enquanto a sua voz mágica “tocava” sinfonias, ou entoava temas do cancioneiro popular, imitando o clarinete, o contrabaixo, o saxofone…
Das mãos calosas do marceneiro-músico, saíam os móveis que os noivos sonhavam, os berços que as mães embalavam, os mochos em que os avós se sentavam, a contar histórias à lareira…
E a sua obra-prima, o seu orgulho foi uma cadeira de braços episcopal, em madeira esculpida e dourada. Ela tinha um anjo a tocar harpa que parecia descido dos céus.
Aos oitenta e cinco anos, tinha alguns pregos, folhas de lixa e um martelo, religiosamente guardados na sua mesa de cabeceira, mas as lágrimas corriam pelo seu rosto, quando ouvia na rádio ou na televisão, Mozart, Chopin, Wagner, Verdi…

Autora : Maria João Oliveira

José Gil

não tive infância nem sapatos
apenas uma bicicleta azul para ganhar
firmeza sobre o rio Arade
fui vulcanizando o tempo e a espera
há doenças que não se curam
e as da infância são como chagas

abrem-se as feridas em lágrimas
sem face, apenas uns olhos
sombrios na distância, somos a
Imagem e voamos da infância
para a casa da adolescência
aí as doenças são borboletas sem
cores, atravessam o mar e o oceano
e chegam á praça dos milagres

quem quer mais a infância é
um doença súbita, como a luz
que se configura na pedra

timidos viajantes na idade adulta
continuo na violência extrema
sem sapatos.

Autor: José Gil

Ana Maria Costa




Março


Morre Mãe! Abre uma cova perto da tua extinção no calendário, para que possas assistir inútil, só com um murmúrio de lágrimas, ao permitido pelo Demónio.
Em Fevereiro aflige a proximidade dessa destruição. Mas sabes mãe, já não te abato mais com o que escrevo; é Março, o mês de voltar a nascer.A memória acelera para se encostar ao presente com o avançar dos dias de Março.

Estou no lado da margem, perto à minha imagem retenho uma sensação inócua de que cada ano que passa algo se esquece do corpo e sobe lembrança para a mente. E depois cheira.

Ri Mãe, ri! Já não alcanço a memória ou afasto as letras que te escrevo ou murmuro alto… Aumentam-me as veias nos antebraços, mais forte no direito. Tenho medo que o calendário me avarie os braços e as árvores e as flores e as aves não possam mais sair pelos dedos.

Sei Mãe, talvez deva abandonar o teu corpo nas borbulhas da outra margem e camuflar o buraco que Março menciona perto da memória do calendário com uma ponte de suspiros débeis para a vida não cair enganada.

Autora: Ana Maria Costa


Belvedere Bruno



I.

Menina-flor
Ah, saudade! Lembro-me dela com aqueles cachos nos cabelos, espevitada, ao mesmo tempo que terna. Sua maior distração era caracterizar-se de artistas hollywoodianas. Horas sem fim diante do espelho, esmerando-se em maquiagens, penteados, trejeitos. Nos finais de semana, representava no teatrinho armado ao fundo do quintal da casa onde morava. Plateia fiel. Quem sabe será uma atriz?- era a voz corrente no bairro.
Mentalmente, revejo-a vestida com o uniforme colegial, carregando livros e cadernos, sempre reclamando da matemática, que dizia ser o único entrave na sua vida. Por vezes, parecia contraditória no modo de ser. Uma desenvoltura que não combinava com a aversão a namoros precoces. Enquanto as amigas flertavam, ela lia clássicos contemporâneos. Nada tinha de genial. Simples questão de autenticidade.
Sobrancelhas espessas e arqueadas, olhos cheios de miopia, fazendo-a trocar fulano por beltrano e gerar inimizades por conta do “ela passou e fingiu que não me viu”. Desculpava-se de tudo culpando o defeito ótico, que dizia ser herança dos avós. Não se permitia usar óculos. Eram vitais os traços de lápis negro delineando os olhos.
“Que mal havia em não enxergar bem?” — dizia. Era bonita naquele franzir de cenho e apertar de olhos, tentando descobrir coisas e pessoas. Quisera resgatar essa menina! Menina-flor!
Em sonho, vejo alguém caminhar em minha direção. A princípio, tudo é turvo, mas, aos poucos, identifico rosto, corpo e, emocionada, ouço a sua voz. É ela! Avidamente, beijo e abraço a pequena, como se pudesse retê-la para que nunca mais se perdesse de mim. É forte o desejo de poupar- lhe dores e lágrimas futuras. Olhando-me firmemente, diz:
— Viva seus sonhos! Sem medos! A garotinha ainda existe em você, pois não morri! — frisa. E sorri. Emoção indescritível! Era eu, madura, no meu hoje, abraçando a menina que um dia fui.
Afastando-se, disse adeus e acenou, deixando-me em lágrimas. No corpo, ainda florescendo, aquele vestidinho de fustão branco com bordado na gola...

Autora: Belvedere Bruno

Rosangela_Aliberti

Tua consistência
fruto da sua inconsistência
é voo constante
em cama de elástico
saltos entre os buracos
na rede
na cama de gato
pensamentos mergulham
nas guelras dos peixes
respiração fora d'água.
Autora :Rosangela_Aliberti

sábado, 10 de abril de 2010

Renato Silva



Sobreviverei

Assassinos lacrimejaram em um berçário.

Cercado por familiares que

em gestos pré-infantilizados

tentavam comunicação

não com o predador a se arquitetar

mas com a formalidade ou

o amor ao próximo Rita Baiana:

sem frescura, atietado de tão nobre

descalço se preciso:

amor que nunca cora –

o único deveras.

Na cena mais bela

que a natureza pode proporcionar-nos

amamentaram-se.

Não consta que assassinos não se alimentam -

assim como padeiros, poetas e prostitutas que

com assassinos lacrimejaram em um berçário

ao lado de futuros pecuaristas e jogadores de futebol –

ainda que algum desses não tivera tempo

de driblar a pré-mortalidade ou tristeza que a valha

para errar dois escanteios.

Não consta que atletas nascem barbados.

Nestes pensamento apego-me

ante a ferida dos golpes

para não julgar mal um bebê:

uma rosada bochecha lançada à escuridão

sem nenhum destino traçado

exceto o de ser refém do meio.

Ele: a faca.

Eu: a concentração e o “ter com quem nos mata lealdade”.

Assoprarei sua barriga.

Com um sopro canivete

transbordarei sua boca em sorrisos –

são esses os glóbulos dele.

Nestes pensamentos apego-me.

Sobreviverei.

Autor: Renato Silva [o Cidadão das Nuvens]

AnadeAbrãoMerij


I.
_ no silêncio , a saudade habitada _

[ poema para meu Pai]


existiu um tempo em que :
* a felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela..."
* Jorge de Sena



na ramada de úmidos lírios

a casa suspira aromas de primaveras

como se de um cesto de frutas colhidas frescas

a pureza de infâncias derrama-se sobre a mesa



enquanto o tempo aprisiona a tua eternidade

semeio-te vento onde respira a nossa história

nos jardins, nas clareiras, nas azinhagas, no ar



assim, de ti me acerco com os olhos exaustos da luz

entre as esquinas da memoria a pastorar os silêncios

onde respiram as velhas canções de ninar teus cansaços

como um poema ferido de amor sob o látego da insônia



assim,
de ti me acerco nas madrugadas de ausências irremediáveis
pelos cantos desocupados
onde procuro-te nesse vazio que nada preenche
como se a morrer-me em oferta consagrada

para atingir-te :
uma vez
outra vez
e mais outra

porque ainda caminhas:
[- por essa dor insaciável! ]


Autora: AnadeAbrãoMerij

Elane Tomich


Na testa de um menino

interrogação a carvão

numa pergunta à espera

de longa reposta em mimos

sobre seus passos aqui.


Mal e mal compreendida

a pergunta, ofendida,

adormeceu sobre si.

Pendente ficou a vida

nos sapatos de cadarços

tão pequenos, largos passos

pouca vida, tanta lida




No aparato dos sertões

da razão tantos senões

sola gasta, solo e pasto

hipóteses mil à espera

de tudo onde a vida opera

num grão de areia ao vento

solidão do pensamento.


A sós indagou-se à quimera

num desejo tão comprido

correndo em vão ressequido

de alicerce não cumprido

Curta resposta secava

tão só secava, secava de apenas ser

curiosidade trancada.


Secava tão devagar

o segredo de viver

era terra a beber lágrimas

trapézio a voar vazio

um sonho dependurado

marcas de choro no estio


Mesma terra que me sonha

e, na idéia, coleciona

rios qual o Jequitinhonha.


Ficara a vida parada

ou nada, que o nada é nada?

Anjo errante a virar páginas

provava que o descaminho

de uma reposta fechada

une em roda a ciranda

_que não parece, mas anda_


Vacila à beira ninho

o retorno à mesma espera

daquela pergunta amarrada

na garganta do menino

se for ou não, mas seguia,

no enroscado do imbé

no vôo do curiango

entre o fandango e o banjo

o porque se desfazia

cicio em assovio

em respostas, travessia

ponte do abismo à fé.

[PS: então o menino chorou vales atravessou e conheceu a maré, óbvia reposta calada,à imensidão do nada]

Autora : Elane Tomich

Osvaldo Pastorelli




Ela estava onde sempre esteve.

Quieta alheia a tudo o que ao redor se passava. Cabeça abaixada, o queixo encostado ao peito, o corpo encurvado, o olhar perdido em vagos pensamentos rememorando o tempo e o espaço com fatos que se fixaram na memória do enfraquecido corpo e nas enrugadas mãos que se mexiam num laborioso trabalho imaginário dobrando e desdobrando a barra do vestido.

Sua mente deslizava no escuro, numa suavidade em uma nesga que tanto fazia o que se passava ao seu lado.

De vez em quando alguém ao passar por ela puxava o vestido interrompendo o que fazia. Girando com dificuldade a cabeça olhava a pessoa como se fosse dar bronca ou falar e, conforme a ocasião, como se procurasse por alguém.

Tinha medo de ficar sozinha.

Fosse esquecida no seu canto a espera da morte. Da morte propriamente não tinha medo. O que a apavorava era ficar sozinha, morrer só, sem ter quem segurasse sua mão.

Não distinguia as vozes, gostava de ouvi-las ressoando pela casa barulhenta. O sobe e desce a escada de madeira. O liga e desliga a televisão. As vozes eram um amalgama de sons, sem distinguir de quem era ou de onde vinham, assim passava ela a vida.

Mas um dia, entretidos com seus problemas não viram que com dificuldades ela se apoiou no braço da poltrona e lentamente ficou de pé. Olhou para os lados. Só a neta de cabelos encaracolados olhava para ela. Todos continuavam conversando não viram ela se levantar.

Seguida pela menina atravessou a sala, passou no meio de todos, abriu a porta, sorriu e jogou um beijo para a neta e foi embora.

Autor: Osvaldo Pastorelli

Jorge Vicente

sintra era um lugar no meio da escuridão. pedro procurava os óculos aonde parecia haver pedras. pedras. pedras e mais pedras. pedras grandes e pedras pequenas, pequenos rochedos como tochas que invadiam o espaço lunar, o lugar onde milhares, centenas, dezenas, pequenos pontos de pessoas escreveram as suas histórias, as suas memórias, as suas lentas ascensões, as suas pequenas quedas. pedro era uma dessas pessoas, como todas as pessoas que procuravam, não os óculos, mas o caminho de regresso para os carros, que estavam na base do monte.

não te preocupes, amanhã vens cá.

preocupo-me, pois tenho de escrever uma parte do romance. sabes, aquela história que contei no dia dos teus anos. pensei transformá-la num capítulo, num pequeno acrescento. gostaste da ideia?

eu gosto de todas as tuas ideias.

sim. [mas não interessa nada o que perdi, talvez amanhã compre outros. ou talvez amanhã volte cá e não existam mais as pedras. nem os milénios, nem os decénios, nem os centénios. no fundo, o tempo não acrescenta nenhuma vida às plantas. elas não se apercebem do que o tempo é, mas nós focamos sempre a história e as manifestações de pesar e de dor].

amanhã volto cá. [mas talvez diga que não voltei, que me tornei muito limitado, que limei as unhas, que apanhei uma pneumonia, que demorei mais tempo a escrever as minhas memórias, que me senti mais aberto do que os outros dias, que ressurgi e voltei a nadar no mesmo local. talvez diga tudo e dê respostas para tudo. mas nada tem resposta.]

acho bem. vamos voltar.

vamos.

mas pedro não se apercebeu. havia uma tristeza nas pedras. uma pequena resposta aos limites da memória que impõe que percamos algo e que não procuremos esse algo, esses cavalos que fazem sombra aos livros, às pessoas e às pedras [1]. tudo o que nasce fica nos lugares onde amanheceu, onde fez sombra e luz, onde contou histórias, pessoas, onde acrescentou o que antes não havia sido acrescentado. os óculos não interessavam, mas havia um companheiro estranho na estrada da lua, algo que não pertencia ao tempo das pedras, nem das pessoas que as habitavam. algo que era um grito aberto do nosso tempo, uma construção artificial que impunha a visão quando ela estava sempre lá, embora escondida, silenciosa, remetida ao silêncio sagrado das árvores.

Autor: Jorge Vicente

Antônio Adriano de Medeiros


"Posso resistir a tudo, menos às Tentações", como dizia Oscar Wilde.
1.

CIDADE MARAVILHOSA
Sobrevoava uma tarde o litoral do Brasil
quando algo, lá embaixo, a visão me atraiu.
Era uma bela cidade, eu vi ao chegar mais perto,
protegida pelo Cristo, entre montanhas e o mar aberto.

Toda alma tem um fraco pelas coisas belas,
e ao ver suas montanhas tão perto da praia,
belas jovens sorridentes... - Ó, tomara que caia! -
Eram tantas maravilhas que quis morar entre elas.

Mas não durou muito tempo a imagem de paraíso:
as montanhas têm espinhos, o mar é frio e voraz,
as mulheres são bonitas mas é de outro o seu sorriso.

E examinando o Cristo, eu vi, mesmo a olho nu,
que ele está petrificado, é um fantoche e nada mais,
pois quem domina a cidade, na verdade, é Belzebu.

2.

VERÃO NO RIO

É em dezembro, janeiro e fevereiro,
quando mais ardem as suas artérias,
que a cidade do Rio de Janeiro
abre as pernas a todos os turistas, em férias.

A velha capital, cansada da árida e amarga luta
de nove meses em que finge ser uma jovem executiva,
pode então descansar. E, já sem máscara, exibe, altiva,
sua verdadeira face, seu corpo de eterna prostituta.

Nenhuma outra consegue igualar-se, em beleza,
àquela cortesã que de tão meiga e sedutora
foi capital de um império e enlouqueceu a realeza,

nesses dias em que mais brilha o sol dourado.
- Ah, como foi gostoso aquele dia, em que uma loura
me fez ver, Rio, que teu ócio é o cio acentuado.

3. RIO, EU NÃO TE AMO TANTO ASSIM
E os pobres? E esses marginais, e esses bandidos?
Que destino reservas aos homens vulgares?
O de desaparecer sempre atrás de estampidos?
Ou de morrer de fome? Ou cair de teus patamares?

Se respondes, linda mulher, eu me calo.
A tua voz impõe tua presença,
e eu não resisto a ti, e entalo.
- Se me consomes aos poucos, acho gostosa a doença.

É a Beleza - Tinha que ser a maldita! -
que me faz perdoar-te a cada hora
e te amar ainda demais...

Mas teu orgulho é tanto, feiticeira bonita,
que de repente eu posso ir-me embora
e não voltar nunca mais!

Autor : Antônio Adriano de Medeiros

[Foi entre janeiro de 1986 e março de 1989 que escrevi esses sonetos, procurando também cantar, ao meu modo de nordestino estudante e jovem, a mais cantada das cidades do Brasil. Porque além de bonita e gostosa e cosmopolita, ela é apaixonante.]

Francisco Coimbra


[A Poesia é qualquer coisa que pratico e funciona para mim como julgo funcionaram as orações para os crentes, por isso..., vou dedicar uma poesia para ti e para teu filho, escrevendo-a:]


QUERO A BELEZA

«o ponto de partida é sempre
o ponto onde queremos chegar»,
Manuel Dias

quero que fiques bom
para sentires a tua saúde
como quando respiras
sem dar conta deste acto

quero fazer poesia
deste modo simples onde
respiramos sem esforço
nem qualquer certeza

quero essencial à beleza
este espanto
que não me espanto
de nela procurar e encontrar
Assim

[Talvez o Assim tenha dito tudo o que quis dizer, também eu o queria conseguir, talvez assim:]


PER_FEIÇÃO


não preciso de conhecer
uma pessoa a quem desejo
o bem o bom e o melhor

se nós somos a situação
sendo a nossa condição um
perfeito condicionalismo

uso a "perfeição" assim:
primeiro quero o que quero
depois desejo o desejo?

aceito que a Poesia possa
dar a resposta à questão
descobrindo o título

Autor Francisco Coimbra

Isiara Caruso



O luar persegue meus olhos

através da pequena fresta na janela

e zomba de minha louca agonia

de sonhar assim desperta,

sem vestir a fantasia,

por desnudar-me de mim

frente ao espelho, no escuro,

da noite que morre fria.

Autora : Isiara Caruso

[Natural de Porto Alegre, atualmente residindo em Buenos Aires,dividindo o coração entre o Tango e o Fandango gaúcho.

Educadora por formação, Especialista em Psicopedagogia e Educação a distância e escritora por inspiração desde muito jovem.

Atualmente, representa o Movimento Internacional do Poetrix , na Argentina, divulgando este gênero surgido no Brasil]

Geraldes de Carvalho









Estou aqui .
Quase não sei
mesmo quem sou .

Mas sinto, sinto
meu coração pequeno
fiel à vida .




Ele bate, rebate
e ao bater
envia para cima
o sinal de viver
à minha mente .

E é então
que sinto e sei
que sou gente.

E por saber
começo a repensar
a meditar :
Porque é que estou
aqui ?

Não encontro resposta
é a verdade .
Porque a resposta é
o mesmo meditar
que a si não se conhece .

Não sabe como é
sabe apenas que é.

Esse saber não me contenta.
Procuro saber mais .

E é esse procurar
que é a vida :
Mais e mais
e mais.

Autor: Geraldes de Carvalho