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A Rocco lança um blog especial sobre QUE PAIS É ESTE? , de Affonso Romano de Sant`anna: http://quepaiseesteolivro.wordpress.com/

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Affonso Romano de Sant`anna

Deu-se conta de que não estava entendendo nada dos seus sentimentos em relação à pessoa que desejava & detestava. Desejava& destestava, exatamente com esse “&” de Cia. Ltda. , porque se sentia enlaçado, laçado e cansado dessa ligação como se houvesse entre ambos um pacto de feliz infelicidade.
O fato é que sofria. Sofria e amava. Amava e detestava o objeto que amava. Mais complexo ainda: estava apaixonado pelo objeto de seu sofrimento. Já nem sabia se amava mais do que sofria, como o viciado o vício. Mas que diabo de amor é esse? (se cobrava), por que tem que ser essa coisa tão desagradável? (se punia), enquanto ia anotando umas palavras no primeiro pedaço de papel à sua frente. E foi se dando conta que isto já era uma rotina, uma mania. Volta e meia pegava um pedaço de folha qualquer e ia anotando as características positivas e negativas do seu amor. Era como se anotasse para se liberar. Se escrevesse aquilo e deixasse ao leu, aquilo eram despetalados espinhos que iriam ficando fora da ferida. Ou, talvez, fosse um modo de elaborar os confusos sentimentos. Havia lido num manual americano, desses que mandam anotar e listar o que a pessoa pensa ou aquilo que deve se esforçar por obter, para assim visualisar e clarear seus contraditórios sentimentos e vontades, e então ia anotando.
Mas quanto mais anotava (aqui e ali os fragmentados sentimentos e papéis iam se disseminando dentro de livros, agenda, entre recibos dívidas e dúvidas), quanto mais anotava o que achava positivo e negativo, mais se desesperava porque a coluna do negativo só crescia. Mas quanto mais cresciam os atributos negativos da pessoa amada que racionalmente dissecava, mais preso a ela se sentia. Então olhava a lista, como quem faz um rol de compras e se indagava. –Diacho, porque não acabo logo com essa relação?
Topou com uma dessas listas, que havia escrito há meses. Os dados negativos estavam lá:
Me provoca insônia
Me deixa em ansiedade diante do telefone
Me transformou numa pessoa insegura
Tem uma estranha oscilação de humor
Me faz sentir ridículo
É muito imprevisível
Inibe meus afetos e palavras
Me faz sentir rejeitado
Tem umas coisas tão infantis
Não se interessa por minhas coisas
É auto-centrada
Na verdade, é imatura
Só quer receber
Mas aí,contraditoriamente, começava a se lembrar de certos momentos, de detalhes do corpo, ou de alguns instantes de prometida paz e felicidade. Quem sabe se …
Vou pegar o telefone, não, telefone não é o instrumento certo para isto, tem que ser pessoalmente essa conversa, aliás, vou pegar o telefone, mas é para marcar logo um encontro, dizer que precisamos ter uma conversa pessoal e depois, cara a cara, dizer, enfim, que pensei muito que é melhor a gente parar por aqui, etc.
Telefonou. Marcou. Foi, viu e não venceu nem convenceu.
Mas é a última vez, foi se dizendo na volta para casa, como se quisesse se convencer que a derrota não havia sido em vão.
Não foi a última vez. Outras últimas vezes se sucederiam. Precisava ser vitoriosamente derrotado várias outras vezes, como se quisesse gastar o corpo alheio no desencontro dos encontros.
E a lista de defeitos e qualidades do objeto desejado & destestado ia refazendo e reescrevendo, c omo se, pela reinscrição, a tinta fosse se gastando, como se assim os sentimentos fossem se exaurindo, se apagando, se repetindo, se anulando, com se a melhor forma de se libertar do infeliz amor fosse sofrê-lo até o fim, ou, então, até o momento em que seu instinto de sobrevivência o fizesse, subitamente, romper com tudo e, finalmente, libertar-se.

Autor: Affonso Romano de Sant`anna

2 comentários:

Otelice disse...

Belíssimo espaço.
Parabéns!

jorge vicente disse...

E é assim com muito boa parte de alguns de nós. Guardamos. Guardamos. Guardamos. E, na altura do momento crucial, a represa é fraca demais para o embate.

Grande abraço
Jorge