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A Rocco lança um blog especial sobre QUE PAIS É ESTE? , de Affonso Romano de Sant`anna: http://quepaiseesteolivro.wordpress.com/

domingo, 11 de abril de 2010

Cláudia Helena Villela de Andrade


Se eu não dormir?

Ultrapassar sem falha

A impaciência da insônia,

Das horas no vácuo,

Ouvindo o pêndulo do relógio da sala

E a luz da lua que não se mexe

No silêncio de Orion sem cauda,

Fixa, permanente.

Vou plantar sonhos na minha seara.

Ceifar a noite decantada de madrugada,

Sem descanso, feito um rio de inverno que não seca,

Filete sem vida.

Insistente.

Se eu não dormir?

O sabiá não cisca o grão na minha mão

Porque a trava do viveiro quebrou

E os pássaros migraram de mim...

Estão aqui e deixaram-me.

Voam sobre pastagens e

Perseguem os cantos de quem nunca morre.

Não adianta ter pássaros em gaiola.

Se eu não acordar?

Meus olhos vão sangrar

De peso e de pedra.

Minhas mãos, em cruz,

Sem o próprio abraço.

Nem a terra há de querer

O resto sólido da minha alma.

Para sempre insepulta.

Autora: Cláudia Helena Villela de Andrade

sonia regina


desapareceram as estrelas e pouco te faz crer que existiram.
ver já não te basta, a contemplação ruiu.
temperaturas amenas desistiriam deste tempo, se pudessem
desvincular-se do sol

a umidade atingiu a ficção, tudo ficou velho e bolorento

tens escárias, tua dor tem cheiro ruim
e ocultá-la não impede o odor que se alastra

eventos fatais são imprevisíveis e o poético não é sinal de profecia.
portanto, desiste das palavras que têm função:
estão contaminadas por uma destinação secreta que fracassou

exuma esse peso biográfico que te acompanha e transforma,
deixa para trás a publicidade fúnebre da criança que ainda te ronda:
há mais que simulações de felicidade, a maldade é coisa da mente
e a mitificação da dor do artista é estratégia do poeta.

Autora: sonia regina

Maria João Oliveira




Foi para a banda de música da vila como quem agarra a partitura de um sonho e constrói outro hino da alegria. Naquele adolescente, as notas da pauta corriam dentro das veias como um rio. Voava nas asas do seu canto e a esperança dançava nos seus olhos azuis.
Um dia, na cidade grande, um maestro conhecido parou, fascinado, junto do coreto. E quis saciar a sede daquele músico. E quis levantar, bem alto, aquele facho a arder junto à terra.
Porém, à mesma hora, no latifúndio, o pai do jovem músico morria sob as patas de um cavalo negro. Na mesa do seu lar, o pão endureceu e nos olhos da mãe era noite cerrada. Expulso da Terra Prometida, ele era, agora, o homem do leme. O dever ditava, assim, as suas leis, mas o sonho não se rendia e cavalgava a corta-mato, no seu sangue. Tinha fome do pomar todo, mas nem um fruto podia colher.
Na oficina, João, o jovem músico, obedecia ao mestre, sem correntes nem ventos favoráveis ao sonho. E entregou-se à arte milenar de trabalhar a madeira, enquanto trauteava Mozart, Chopin, Wagner, Verdi.
Aquela oficina não tinha telefone, fax, computador, nem serra fixa de mesa, lixadeira, nem serra portátil, desempenadeira… Tinha mãos de calos, mãos suadas, mãos de sangue que esculpiam a madeira, com a paciência e a habilidade do ourives.
E o belo sabor das coisas simples começou a fazer parte do seu ofício, num espaço já seu, com a imagem de S. José carpinteiro, num calendário. E na madeira, o formão gravava flores, espigas, presépios, anjos, dragões, enquanto a sua voz mágica “tocava” sinfonias, ou entoava temas do cancioneiro popular, imitando o clarinete, o contrabaixo, o saxofone…
Das mãos calosas do marceneiro-músico, saíam os móveis que os noivos sonhavam, os berços que as mães embalavam, os mochos em que os avós se sentavam, a contar histórias à lareira…
E a sua obra-prima, o seu orgulho foi uma cadeira de braços episcopal, em madeira esculpida e dourada. Ela tinha um anjo a tocar harpa que parecia descido dos céus.
Aos oitenta e cinco anos, tinha alguns pregos, folhas de lixa e um martelo, religiosamente guardados na sua mesa de cabeceira, mas as lágrimas corriam pelo seu rosto, quando ouvia na rádio ou na televisão, Mozart, Chopin, Wagner, Verdi…

Autora : Maria João Oliveira

José Gil

não tive infância nem sapatos
apenas uma bicicleta azul para ganhar
firmeza sobre o rio Arade
fui vulcanizando o tempo e a espera
há doenças que não se curam
e as da infância são como chagas

abrem-se as feridas em lágrimas
sem face, apenas uns olhos
sombrios na distância, somos a
Imagem e voamos da infância
para a casa da adolescência
aí as doenças são borboletas sem
cores, atravessam o mar e o oceano
e chegam á praça dos milagres

quem quer mais a infância é
um doença súbita, como a luz
que se configura na pedra

timidos viajantes na idade adulta
continuo na violência extrema
sem sapatos.

Autor: José Gil

Ana Maria Costa




Março


Morre Mãe! Abre uma cova perto da tua extinção no calendário, para que possas assistir inútil, só com um murmúrio de lágrimas, ao permitido pelo Demónio.
Em Fevereiro aflige a proximidade dessa destruição. Mas sabes mãe, já não te abato mais com o que escrevo; é Março, o mês de voltar a nascer.A memória acelera para se encostar ao presente com o avançar dos dias de Março.

Estou no lado da margem, perto à minha imagem retenho uma sensação inócua de que cada ano que passa algo se esquece do corpo e sobe lembrança para a mente. E depois cheira.

Ri Mãe, ri! Já não alcanço a memória ou afasto as letras que te escrevo ou murmuro alto… Aumentam-me as veias nos antebraços, mais forte no direito. Tenho medo que o calendário me avarie os braços e as árvores e as flores e as aves não possam mais sair pelos dedos.

Sei Mãe, talvez deva abandonar o teu corpo nas borbulhas da outra margem e camuflar o buraco que Março menciona perto da memória do calendário com uma ponte de suspiros débeis para a vida não cair enganada.

Autora: Ana Maria Costa


Belvedere Bruno



I.

Menina-flor
Ah, saudade! Lembro-me dela com aqueles cachos nos cabelos, espevitada, ao mesmo tempo que terna. Sua maior distração era caracterizar-se de artistas hollywoodianas. Horas sem fim diante do espelho, esmerando-se em maquiagens, penteados, trejeitos. Nos finais de semana, representava no teatrinho armado ao fundo do quintal da casa onde morava. Plateia fiel. Quem sabe será uma atriz?- era a voz corrente no bairro.
Mentalmente, revejo-a vestida com o uniforme colegial, carregando livros e cadernos, sempre reclamando da matemática, que dizia ser o único entrave na sua vida. Por vezes, parecia contraditória no modo de ser. Uma desenvoltura que não combinava com a aversão a namoros precoces. Enquanto as amigas flertavam, ela lia clássicos contemporâneos. Nada tinha de genial. Simples questão de autenticidade.
Sobrancelhas espessas e arqueadas, olhos cheios de miopia, fazendo-a trocar fulano por beltrano e gerar inimizades por conta do “ela passou e fingiu que não me viu”. Desculpava-se de tudo culpando o defeito ótico, que dizia ser herança dos avós. Não se permitia usar óculos. Eram vitais os traços de lápis negro delineando os olhos.
“Que mal havia em não enxergar bem?” — dizia. Era bonita naquele franzir de cenho e apertar de olhos, tentando descobrir coisas e pessoas. Quisera resgatar essa menina! Menina-flor!
Em sonho, vejo alguém caminhar em minha direção. A princípio, tudo é turvo, mas, aos poucos, identifico rosto, corpo e, emocionada, ouço a sua voz. É ela! Avidamente, beijo e abraço a pequena, como se pudesse retê-la para que nunca mais se perdesse de mim. É forte o desejo de poupar- lhe dores e lágrimas futuras. Olhando-me firmemente, diz:
— Viva seus sonhos! Sem medos! A garotinha ainda existe em você, pois não morri! — frisa. E sorri. Emoção indescritível! Era eu, madura, no meu hoje, abraçando a menina que um dia fui.
Afastando-se, disse adeus e acenou, deixando-me em lágrimas. No corpo, ainda florescendo, aquele vestidinho de fustão branco com bordado na gola...

Autora: Belvedere Bruno

Rosangela_Aliberti

Tua consistência
fruto da sua inconsistência
é voo constante
em cama de elástico
saltos entre os buracos
na rede
na cama de gato
pensamentos mergulham
nas guelras dos peixes
respiração fora d'água.
Autora :Rosangela_Aliberti