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domingo, 11 de abril de 2010

Maria João Oliveira




Foi para a banda de música da vila como quem agarra a partitura de um sonho e constrói outro hino da alegria. Naquele adolescente, as notas da pauta corriam dentro das veias como um rio. Voava nas asas do seu canto e a esperança dançava nos seus olhos azuis.
Um dia, na cidade grande, um maestro conhecido parou, fascinado, junto do coreto. E quis saciar a sede daquele músico. E quis levantar, bem alto, aquele facho a arder junto à terra.
Porém, à mesma hora, no latifúndio, o pai do jovem músico morria sob as patas de um cavalo negro. Na mesa do seu lar, o pão endureceu e nos olhos da mãe era noite cerrada. Expulso da Terra Prometida, ele era, agora, o homem do leme. O dever ditava, assim, as suas leis, mas o sonho não se rendia e cavalgava a corta-mato, no seu sangue. Tinha fome do pomar todo, mas nem um fruto podia colher.
Na oficina, João, o jovem músico, obedecia ao mestre, sem correntes nem ventos favoráveis ao sonho. E entregou-se à arte milenar de trabalhar a madeira, enquanto trauteava Mozart, Chopin, Wagner, Verdi.
Aquela oficina não tinha telefone, fax, computador, nem serra fixa de mesa, lixadeira, nem serra portátil, desempenadeira… Tinha mãos de calos, mãos suadas, mãos de sangue que esculpiam a madeira, com a paciência e a habilidade do ourives.
E o belo sabor das coisas simples começou a fazer parte do seu ofício, num espaço já seu, com a imagem de S. José carpinteiro, num calendário. E na madeira, o formão gravava flores, espigas, presépios, anjos, dragões, enquanto a sua voz mágica “tocava” sinfonias, ou entoava temas do cancioneiro popular, imitando o clarinete, o contrabaixo, o saxofone…
Das mãos calosas do marceneiro-músico, saíam os móveis que os noivos sonhavam, os berços que as mães embalavam, os mochos em que os avós se sentavam, a contar histórias à lareira…
E a sua obra-prima, o seu orgulho foi uma cadeira de braços episcopal, em madeira esculpida e dourada. Ela tinha um anjo a tocar harpa que parecia descido dos céus.
Aos oitenta e cinco anos, tinha alguns pregos, folhas de lixa e um martelo, religiosamente guardados na sua mesa de cabeceira, mas as lágrimas corriam pelo seu rosto, quando ouvia na rádio ou na televisão, Mozart, Chopin, Wagner, Verdi…

Autora : Maria João Oliveira

2 comentários:

Anônimo disse...

Ai que lindo, caríssima amiga. Parabéns. Seu texto é belíssimo. Saludos. Maria José Limeira.

Maria João disse...

Obrigada por estas palavras, Maria Limeira.
O "Marceneiro-músico" era um "pássaro" de asas cortadas que provocava arrepios na espinha a quem tinha o privilégio de o ouvir.
Ele já partiu, há alguns anos. E eu não podia deixar de lhe prestar esta modesta homenagem.

Um abraço
Maria João Oliveira